terça-feira, 7 de agosto de 2012

"Amor, quando é mesmo o seu aniversário?"

Por Rafael Alves Pereira*rafa_alves@hotmail.com

Alguma vez você já experimentou a situação de passar semanas planejando uma viagem com o seu marido ou namorado, escolher o melhor roteiro, garimpar as pousadas mais charmosas, pesquisar as datas mais convenientes para as reservas de passagens e, quando você imaginava que já estava tudo pronto, agendado e organizado, ele sem nem ao menos te consultar decide cancelar tudo, muda os planos e só te avisa na última hora?

Alguém também já deve ter passado pelo exercício de paciência de ter uma namorada daquelas que não param quietas um minuto, estão sempre buscando algo novo para fazer – na verdade nem precisa procurar muito, a criatividade dela se encarrega de ir emendando uma coisa na outra com uma rapidez impressionante – e nem quando vocês tiram aquele merecido descanso de final de semana, isolados em algum lugarejo nas montanhas ou numa praia tranqüila, o quadro se altera: levanta, dá uma volta, senta de novo, irrita-se porquê o celular está sem sinal e ela não consegue falar com ninguém, abre uma revista, folheia outra... Pois se você se identificou com algum destes casos tem grandes chances de ser o premiado parceiro de um portador do Transtorno de Déficit de Atenção com Hiperatividade (TDAH).


As situações descritas podem parecer exageradas, mas são baseadas em depoimentos reais de pessoas que convivem com portadores de TDAH, um distúrbio ainda sub-diagnosticado, e que pode transformar em um rodamoinho a vida de quem sofre do problema. E os namorados, maridos, esposas e demais parceiros, que convivem diretamente com a pessoa, são carregados para o olho do furacão sem nem bem saber porquê.

O nome da enfermidade é auto-explicativo. Uma das principais queixas das pessoas que apresentam o TDAH é a falta de atenção, que vem acompanhada de dificuldade de se lembrar de pequenas coisas (e de outras nem tão pequenas assim), de guardar nomes ou ficar concentrado durante muito tempo em uma mesma atividade. Há ainda a tendência a se distrair facilmente com qualquer coisa (qualquer coisa mesmo), perder objetos, esquecer compromissos e não prestar atenção no que os outros dizem.

"Alô? Você está aí?"

Pequenos problemas como esses podem não incomodar muito quando surgem isoladamente, mas se uma mesma pessoa apresenta todos em grau acentuado, a vida íntima e social pode ficar bastante comprometida. O relacionamento a dois do portador de TDAH é muitas vezes uma prova de paciência para ambos: ao portador cabe um grande esforço para tentar vencer as limitações impostas pela enfermidade, e o parceiro precisa ter paciência redobrada para lidar com a desatenção crônica a os esquecimentos freqüentes. Quem já teve um namorado que sempre se atrasa, esquece compromissos que foram marcados com antecedência e até mesmo se distrai quando está ao telefone sabe o que é isso.

- Às vezes eu estou ao telefone com a minha namorada e ela me pergunta “Alô, você ainda esta aí?”. É que eu me distraio com qualquer coisa, me desligo sem saber. Posso estar olhando pela janela e ver um carro passando que “plim”, passo literalmente para o mundo da lua, como num passe de mágica - relata o estudante de engenharia Marcelo Medeiros, de Campinas, que descobriu recentemente que é portador de TDAH. - Mas agora ela já se acostumou e não se irrita tanto. Ela é bem relaxada e lida bem com os meus atrasos e esquecimentos – completa Marcelo, que também sofre de uma dificuldade aguda de cumprir horários.

- Nunca consigo chegar no horário. Não é exagero quando digo que me distraio muito. Quando estou me arrumando para sair com a minha namorada, às vezes, saio do banho e, quando passo pelo quarto para me vestir, vejo um CD em cima da mesa e coloco para ouvir. Depois esqueço do CD (e do encontro) e pego uma revista ou ligo a TV. Quando me lembro do que estava fazendo e olho no relógio, já estou atrasado e tenho que sair correndo – conta Marcelo. Ele lembra que já teve muitas brigas com antigas namoradas por causo dos atrasos.

- Mas a minha namorada de agora já não liga tanto. Nestes 8 meses em que estamos juntos ela já se acostumou e até faz piada. Quando digo para ela que vou passar para buscá-la às oito em ponto, ela ri e diz que vai começar a se arrumar às dez e meia.

Problemas com atrasos são uma queixa freqüente

A pessoa sai de casa às 17h, na hora em que a reunião estava marcada. Mas e se esquece do fato de escritório ficar do outro lado da cidade. O curioso é que os pacientes de TDAH são pontuais no seu atraso, eles se atrasam sempre os mesmo minutos. Se o horário é às 7h, ele vai sempre chegar às 7h15, não varia muito – explica o psiquiatra Marcos Romano, professor da PUC de Campinas.

"Pontualmente atrasado?"

É exatamente esse último item que tira muitas pessoas do sério. Partindo de um pensamento racional e perfeitamente aceitável se não fosse a lógica particular que envolve transtorno, muita gente se indaga: se a pessoa consegue chegar todos dias “pontualmente atrasado”, por que afinal é incapaz de chegar no horário?

- Há estudos que mostram que a percepção da passagem do tempo em quem sofre de TDAH é diferente da de uma pessoa normal . Ele sempre acha que pode fazer mais alguma coisa antes de sair para o compromisso. Se passa em frente ao computador acha que pode parar um minuto e responder alguns emails. Depois resolve aproveitar para fazer um telefonema e por aí vai. O paciente com TDAH vive o presente e tem dificuldade planejar o futuro – completa Marcos Romano, lembrando que em seu consultório recebe diversas pessoas que sofrem com o problema. Ele explica que em geral as mulheres procuram tratamento médico por outros problemas e depois acabam se descobrindo portadoras do TDAH. Já os homens em geral já aparecem devidamente “auto-diagnosticados”, esperando nada mais que uma confirmação médica.

Isso ocorre por que há três formas do TDAH

A forma hiperativa-impulsiva tem predomínio dos sintomas de hiperatividade e impulsividade.

A forma desatenta apresenta principalmente os sintomas de desatenção e falta de memória. Já a forma combinada possuiu os dois tipos de sintomas em freqüência semelhante.

A maioria dos homens sofre da forma combinada, com uma freqüência maior de sintomas hiperativo-impulsivos, como impulsividade, impaciência, ter “pavio-curto” e ficar em movimento o tempo todo. As mulheres, por sua vez, sofrem principalmente da modalidade desatenta. Uma moça distraída, quieta, esquecida, que nunca se lembra de onde deixou a sua bolsa e troca os nomes das pessoas é em geral mais bem tolerada que um sujeito explosivo, que se irrita com facilidade, não mede as suas palavras e não para quieto um minuto, fazendo com que as mulheres procurem ajuda profissional em um número bem menor que o de homens.

Gafes em série

Bastante paciência e jogo de cintura são essenciais para quem é parceiro de um portador de TDAH. Paciência para conviver diariamente com os esquecimentos e com a desatenção. E jogo de cintura para conseguir contornar as situações delicadas e constrangedoras que podem eventualmente ocorrer. Na verdade, que podem ocorrer com certa freqüência. A impulsividade é um dos sintomas mais visíveis no TDAH. O portador freqüentemente age por impulso e não costuma ponderar muito sobre suas atitudes, falando o que vem à cabeça. A combinação de falta de atenção, lapsos de memória e mais o ímpeto de não ter papas na língua pode fazer do portador um especialista em cometer gafes em série.

- O Eduardo às vezes solta umas frases no meio de uma conversa que me deixam morta de vergonha. Ele é muito impulsivo e, para os outros, chega a dar a impressão de que não tem muita noção dos limites e convenções sociais. Mas a verdade é que ele em geral se arrepende do que falou imediatamente – conta a jornalista Sílvia de Andrade, do Rio de Janeiro, acrescentando que nos 3 anos e meio de relação já se tornou campeã em sair de saias-justas causados pelo TDAH do marido.

- Logo que nos casamos, a irmã do Eduardo nos deu um quadro de presente para a nossa casa nova. E ele, sem nenhum traquejo ou cerimônia, disse na cara dela que não tinha gostado do quadro, que achou feio. A pobrezinha ficou com uma cara de taxo.

Sílvia diz que acontecimentos como esse são relativamente freqüentes, mas que em certa medida já aprendeu a conviver com isso.

- Mas não vou dizer que é fácil por que não é. A pessoa tem que ter muita paciência e capacidade de compreensão. De vez em quando é difícil. E tenho que tentar entender e resolver o problema, por mais irritada que eu esteja.

O doutor Romano avisa que o cônjuge precisa conhecer o TDAH e saber o que é a doença. Ele sempre recomenda que o marido ou a esposa leia sobre o assunto, que busque informações para compreender melhor como funciona o cérebro de uma pessoa que tem TDAH. O parceiro tem que saber que o transtorna faz com que a pessoa tenha uma consciência de si própria bastante precária. Romano comenta, bem humorado, que costuma dizer que a pessoa é “tão distraída que não percebe que é distraída”.

Ofender sem querer

O administrador Ricardo de Oliveira, que mora em São Paulo, admite que por mais que tente se controlar, não consegue evitar as gafes. Para ele, assim como para muitos outros que vivem com o TDAH, já se tornou rotina se arrepender daquilo que falou segundos atrás.

- Você até sabe que não deveria falar e logo depois se arrepende. Mas aí já foi, não tem o que fazer. Uma ex-namorada minha era uma garota super tranqüila e relaxada, e não se preocupava tanto quanto eu com as roupas, em se produzir. Uma vez íamos sair e logo que ela terminou de se arrumar eu disse “Mas você vai assim?”. O jeito com que ela me olhou foi suficiente para eu me arrepender na hora. A gente sabe que nunca deve falar uma coisa dessas para uma mulher assim, na cara. Mas na hora não pensei e quando vi já tinha falado.


A psiquiatra carioca Vanessa Ayrão, que realiza pesquisa sobre o TDAH no IPUB, o Instituto de Psiquiatria da Universidade Federal do Rio de Janeiro, explica que por causa da doença os pacientes, sem ter intenção, chegam a falar coisas que podem magoar os outros. Ela conta que eles freqüentemente agem no ímpeto, antes de pensar e colocam os fatos até mesmo de uma maneira agressiva, o que pode acabar minando e comprometendo a relação. O caso de Ricardo ilustra bem esse problema. Ele conta que por causa disso, muitas namoradas já o acusaram de ser “sincero demais”.

"Ele não me escuta!!!"

Mas a maior queixa dos maridos, esposas, namorados e de quem convive com portadores TDAH é e dificuldade de conseguir conversar com as pessoas sem que ela se distraia, pense em outras coisas e fuja para o mundo da lua no meio da conversa. Se em casamentos em que nenhum dos dois apresenta TDAH a dificuldade de comunicação é um problema constante, imagine então quando o marido ou a esposa simplesmente não consegue prestar atenção ao que o outro diz por muito tempo. A cena é clássica: um deles fala, fala... enquanto o outro parece escutar. Ele pode até ter se concentrado nos início, mas depois se distrai com o som da TV ou olhando o quadro que está na parede logo atrás do parceiro: “Amor, você está me ouvindo?”; “Ah, o que é? Desculpe estava distraído...”. E está o aí estopim para uma discussão das boas, que podem incluir acusações como “você nunca me escuta”, “nada do que eu falo é importante para você”, “você não se importa comigo. Eu te falo uma coisa e na semana seguinte você já não se lembra!”.

- No início, logo que eu conheci a Débora, eu achava um pouco grosseiro o fato de ela se desligar da conversa. Já estamos juntos há quase quatro anos e ainda hoje isso é o que mais me chama a atenção no nosso cotidiano. Muitas vezes eu falo com ela e tenho a sensação de que ela está fazendo uma viagem astral, que está num mundo à parte – brinca o economista carioca Henrique Bastos. Ele conta que já aprendeu a lidar com as “viagens” da esposa, mas que isso não o impede de se irritar em certas ocasiões - Quando estou falando sobre um assunto sério e ela se distrai, eu me irrito. Posso ser compreensivo mas não sou de ferro.

- Eu até tento me concentrar e prestar atenção ao que ele me diz. Mas eu me distraio sem querer. Quando vejo já estou pensando em outra coisa ou olhando para o lado. Depois que iniciei o tratamento médico o problema melhorou bastante. Me sinto mais paciente, consigo ouvi-lo melhor, não sou mais tão impulsiva – se defende a esposa. E como as maiores queixas eram do marido, ele se encarrega agora de fiscalizar os horários em que ela toma os remédios. Henrique diz que percebe pelo comportamento da esposa quando ela se esqueceu dos comprimidos e é o primeiro a cobrar.

Disfunções no funcionamento do cérebro

Mas problemas como esse não são comuns e afetam também pessoas tidas como normais? Os médicos dizem que sim, mas ressaltam que quando a pessoa tem TDAH, os problemas são mais freqüentes e acentuados, o que pode ser bastante desgastante para um relacionamento. Quem não ficaria chateado se o parceiro se esquecesse sempre dos compromissos, datas, aniversários e mesmo do seu prato preferido? Não se trata de falta de interesse ou descaso, mas sim de uma incapacidade com explicações biológicas. Inúmeros estudos científicos já demonstraram que o TDAH sofre forte influência genética e está relacionado a uma alteração de neurotransmissores em determinadas regiões cerebrais.

Se os parceiros reclamam, a situação também não é das mais simples para o portador. Eles tentam, fazem um esforço sobre-humano para vencer as limitações da doença e freqüentemente se sentem frustrados o por não conseguirem agradar ao cônjuge. Os médicos contam que muitos pacientes procuram tratamento médico inicialmente por causa das reclamações dos parceiros. O estímulo para continuar o tratamento e conseguir conviver com a doença também costuma vir deles. É consenso entre os médicos que sem a ajuda e compreensão daquele que está ao lado, convivendo com o portador, o trabalho fica muito mais difícil.

-Para que a vida do portador de TDAH e de seu parceiro seja melhor, os dois precisam estar atentos ao problema. Todas as recomendações valem para ambos. Na hora de uma conversa, é preciso se livrar de quaisquer outros estímulos que possam atrapalhar. Não adianta tentar conversar fazendo outras coisas, como ver TV, preparar um jantar etc. Um marido que tentar falar com a esposa enquanto ela procura um objeto dentro da bolsa está perdendo o seu tempo – explica Marcos Romano. Ele acrescenta que o contato visual é muito importante para facilitar a “ativação” da atenção.

- Na hora de conversar, olho no olho. Nada de tentar conversar a distância, gritando lá do outro cômodo da casa. Eu sei que pode ser chato, mas não adianta tentar falar enquanto vê assiste a um filme. Use sempre o contato visual.

Montanha-russa amorosa

É preciso ainda estar atento a um outro problema causado pelo TDAH. Muitos portadores reclamam que não conseguem estabelecer relações mais duradouras por que, depois de algum tempo, simplesmente se cansam das pessoas. Essa postura traz dificuldade em todas as relações, sejam amorosas, profissionais ou sociais. A doutora Vanessa Ayrão explica que quem tem TDAH tende a se cansar das situações e das pessoas com muita facilidade. Eles estão sempre buscando novidades e, dentro desta lógica, o relacionamento só é interessante enquanto é uma coisa nova.

- Um relacionamento que para uma pessoa comum é tranqüilo, pode ser extremamente entediante para quem tem TDAH. Ele precisa estar sempre criando estímulos para manter o interesse pela relação. Um dos recursos é até mesmo estimular conflitos, criar brigas. Se os dois não tiverem uma postura crítica e se o parceiro “entrar no jogo”, a relação pode se transformar em uma montanha-russa nada agradável – observa Vanessa.

Na tentativa de levar uma vida em um ritmo mais agradável e diminuir os problemas causados pelo transtorno - e evitar assim as broncas da namorada por ter chegado atrasado ou do marido por que você se esqueceu pela vigésima quinta vez de pagar a conta de telefone - os portadores podem criar estratégias que ajudam a vencer a falta de atenção e a memória fraca. O estudante Marcelo - o mesmo que no início da matéria confessou que, enquanto ouvia música, assistia tv ou ou lia revistas, se esquecia de buscar a pobre namorada que o estava esperando – dá algumas dicas que já testou na prática:

- Passei a anotar tudo e deixo escrito em um bloquinho que levo comigo na carteira. Escrevo inclusive um roteiro de coisas a fazer durante o dia. Pendurei também uma lousa no meu quarto, bem em frente a minha cama, e ali coloco com letras garrafais as coisas importantes.

Mas os compromissos sociais marcados com muita antecedência, no entanto, ele já desistiu de guardar.

- Quem geralmente me lembra do que a gente tem para fazer é a minha namorada. Nós confiamos mais na memória dela - brinca o rapaz.

* Rafael Alves Pereira é jornalista formado pela PUC-Rio e trabalha atualmente na Rádio CBN. Ele escreve para a ABDA reportagens quinzenais, que trazem depoimentos de médicos e pacientes e têm o objetivo de oferecer mais informações sobre o TDAH para quem convive com o problema e para o público em geral. São abordados assuntos como o cotidiano do portador de TDAH, avanços médicos na área e o tratamento dos pacientes.

rafa_alves@hotmail.com

Retirado do site ABDA